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Racismo e Adoecimento Mental: o "ser negro" enquanto fator de risco para o sofrimento psíq

Depois tivemos de enfrentar o olhar branco. Um peso inusitado nos oprimiu. O mundo verdadeiro invadia o nosso pedaço. No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas.

Frantz Fanon - Pele negra, máscaras brancas

EDUFBA, 2008.



A discussão sobre racismo e sofrimento mental perpassa, sobremaneira, pelo entedimento do racismo como elemento estruturante das sociedades atuais, nas diferentes partes do mundo, considerando-se não apenas seus efeitos socioeconômicos e de estruturaração de uma hegemonia branca que hierarquiza o modus vivendi, marginalizando o povo negro.

Na verdade, não obstante todo dano produzido, o racismo se estrutura, também, com base nos seus impactos nas estruturas psíquicas do povo negro, desde o processo inicial de escravização, passando pelo tráfico de pessoas escravizadas, até os dias atuais - em que os tempos pós-diaspóricos só deixam cada vez mais evidente o caráter nefasto do racismo.

Assim, ao meu ver, e por questões de sensibilização individual, que faço questão de compartilhar sempre que oportuno, a relação entre racismo e adoecimento mental me pareceu mais evidente, nesse pouco tempo de luta contra a hegemonia branca, através da leitura dos escritos de Frantz Fanon.

Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra e filósofo da Martinica, considerado um dos mais importantes escritores sobre os efeitos da colonização e do racismo contra o negro, particularmente, na França, mas com elementos que permitiriam uma extensão de suas ideias para análise dessa problematica em todo mundo, àquele período; escritor de Pele negra, máscaras brancas (Peau noire, masques blancs - 1952), bem como Os Condenados da Terra (Les damnés de la terre, 1961), que estão entre suas mais importantes produções para se pensar os impactos da colonização dos corpos e esquemas mentais negros.

Pensar o "esquema corporal" e a construção psíquica do indivíduo negro podem ser tomados como ponto de partida para uma discussão inicial dentro dessa temática; nesse âmbito, há que lembrarmos que históricamente a hegemonia branca desenhou, outorgou e reproduziu - difusamente - os modelos que viriam a ser uma das principais ferramentas contra a construção psíquica de pessoas negras: a criação de uma estética branca como pressuposto da ordem e das "leis naturais".

Carlos Moore nos mostra, em Racismo e Sociedade (2007), práticas amplamente distribuídas entre as civilizações grego-romanas para reiteirar o estereótipo de beleza branca; nesse sentido, lembra-nos sobre o conceito de fisiognomica, de Aristóteles (EVANS, 1969), o qual determina qualidades e defeitos morais do ser humano segundo critérios baseados puramente no fenótipo, como "a cor demasiado negra é a cor dos covardes", enquanto "a cor rosada naturalmente enuncia a boas disposições"; daí a designação genérica de africanos como etiop ("cara queimada"), a qual não deve ser esquecida. (MOORE, 2007).

Em um outro momento, é Fanon quem nos lembra o uso do corpo negro como figura cômica para as sociedade europeias do século XX, através da figura do “y’a bom banania”, onde:

A expressão y’a bon banania remete a rótulos e cartazes publicitários criados em 1915 pelo pintor De Andreis, para uma farinha de banana açucarada instantânea a ser usada “por estômagos delicados” no café da manhã. O produto era caracterizado pela figura de um tirailleur sénégalais (soldado de infantaria senegalês usando armas de fogo), com seu filá vermelho e seu pompom marrom, característicos daquele batalhão colonial. O “riso banania” foi denunciado pelo senegalês Léopold Sedar Senghor em 1940, no prefácio ao poema “Hóstias negras”, por ser um sorriso estereotipado e um tanto quanto abestalhado, reforço ao racismo difuso dominante.

Frantz Fanon - Pele negra, máscaras brancas - EDUFBA, 2008.

As representações acima, estão revestidas de um significado político que tem atravessado os tempos históricos, sempre com a incubência de (re)engendrar o modelo de hegemonia branca declaradamente avessa ao povo negro, incluindo aí suas vestes, sua estética, seus costumes, entre tantos outros aspectos postos à margem; além disso, essas representações se adaptam ao tempo presente, assumindo novas faces para uma mesma proposta, inaugurando novos "y'a bom banania"; isto é, práticas outras, como o uso de imagens de pessoas negras nas redes sociais (frequentemente vinculadas a símbolos depreciativos, associações animalescas, como nas comparações com macacos, entre tantas outras), introduzem as novas formas de atentado aos esquemas corporais de pessoas negras e, numa análise aprofundada, nos impactos ao nosso estado mental.

O corpo constitui-se como representação global da unidade do sujeito e da sua carga referencial, ou seja, como referência a alguma forma de pertencimento, que no caso do corpo negro é o pertencimento à luta de aquilombamento, da luta pós-diaspórica e dos arranjos panafricanistas por uma unidade que supere as ideologias políticas eurocentradas, que nada correlacionam-se às vivências do povo negro.

Por isso que discutir o corpo negro - como um todo -, significa discutir os chamo "corpos do fim do mundo"; e aqui, faço uma referência aos mais recente trabalho da cantora Elza Soares, através do álbum "A Mulher do fim do mundo" (2015), uma referência às mulheres em geral, mas, particularmente, às mulheres negras, com todos os recortes e preditores de vulnerabilidade, que colocam-nas no front das batalhas cotidianas; mas, também, os "corpos do fim do mundo" podem fazer referência aos tantos outros corpos negros, incluindo a grande massa do povo negro encarcerada, as mães e parentes desses negros - que experimentam a desestruturação familiar - as mulheres negras que enfrentam o processo de solidão afetiva, além dos LGBT's negros e tantos outros que experimentam recortes dolorosos para o adoecimento mental.

Sofremos, então, por acumularmos inúmeros fatores de risco para o sofrimento psíquico; vivemos, diariamente, o assedio e a agressão à nossa estrutura mental, o que produz insidiosamente danos permanentes à forma como pensamos e projetamos nosso corpo nas relações sociais; daí sobrevém os quadros de ansiedade, irritabilidade, insônia, baixa capacidade de concentração, prejuízo da auto-estima, maior propensão ao abudo de álcool e outras drogas - até o extremo de transtornos outros codificáveis pelos manuais diagnósticos.

Fanon, em Pele negra, máscaras brancas (1962) nos conta que só há complexo de inferioridade após um duplo processo: (1) inicialmente econômico; (2) em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermidização dessa inferioridade (FANON, 1962). Isto é, a exposição da pessoa negra ao racismo conduz a esse processo de inferiorização, que, sobretudo, ganha solo fértil no nosso nível mental, considerando nossa situação de vulnerabilidade, o que cria um ciclo vicioso entre exposição ao agente nocivo e dano pós-exposição.

Num país cuja história de mito da democracia racial esteve fadada ao fracasso, desde a dizimação de etnias indígenas e extrema redução do contingente de índios no país, até a exploração da mão de obra negra, encarceramento em massa do nosso povo, bem como hospitalização numericamente excessiva de pessoas negras em hospitais psiquiátricos, há que se fazer evidente tal realidade, ainda que com toda a resistência e insensibilidade, inclusive de profissionais, que deveriam estar habilitados para reconhecer as diferentes faces do adoecimento mental.

Inegavelmente, continuamos enquanto populações alvo das políticas higienistas e do racismo enquanto forma de manutenção da hegemonia branca; mas, apesar dos ataques históricos ao nosso povo, a ideia de união panafricanista, valorização do matriarcado negro, a luta contra o encarceramento e extermínio da juventude negra e tantos outros apontamentos, entram como mote da campanha pela resistência de nosso povo.

Apesar de me ver corriqueiramente fadado a sucumbir, considerando todos os recortes de opressões que possuo, enquanto sujeito negro, pertencente a um povo que historicamente soube/sabe resistir, opto por manter os eixos eretos e de cabeça erguida, em memória a todos aqueles que tombam na tentativa de sobreviver. Mais do que tudo, precisamos reconhecermo-nos no outro irmã/irmão negro, que compartilha das mesmas dores, pertencendo a um mesmo povo que sabe encarar o "fim do mundo" como pressuposto para a (re)construção da unidade africana.




Samuel Cardim é Negro, Baiano (valenciano),

Estudante de Medicina e Contraria as estatísticas.


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